segunda-feira, 16 de junho de 2008

Tasso - O Crônico

DA HUMILDE ARTE DE SER CRONISTA
Vicente Serejo*


mmAprendi muito cedo que cronista não é escritor. Em fins dos anos setenta, quando fiz constar meu primeiro livro de crônicas na relação da minha produção acadêmica para efeito de progressão funcional como professor de jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Não foi aceito. Não valia nada. Os livros de poesia, os romances e os ensaios, esses valiam, estavam enquadrados no cânone das prosas e versos. Crônica, não. Sequer era gênero, como se precisasse ter classificação para existir como uma narrativa.
mmDaí pra frente, nunca mais insisti. Nem cobrei do destino uma glória que nunca me foi prometida. Anotadores da vida banal, os cronistas são pequenos contadores de histórias. E se um dia mereceram do professor Antônio Cândido a bênção teórica de narradores de uma literatura ao rés-do-chão, num longo prefácio ao volume quinto da série ‘Para gostar de ler’, da editora Ática, é a ele e à sua generosidade que os doutos devem cobrar a ousadia.
mmAlguns anos mais tarde, numa crônica de Luís Fernando Veríssimo, ‘O Gigolô das Palavras’, li uma frase que jamais esqueci: ‘A sintaxe é uma questão de uso, não de princípios’. Não atende aos gramáticos, mas talvez explique o estilo coloquial de escrever, como quem põe a cadeira na calçada, enquanto nos grandes salões os poetas e prosadores consagrados escrevem a nobre literatura, livre e longe desses temas banais e da vida besta.
mmEsse longo nariz de cera, bem de doze, é só para dizer do sentido simbólico que foi receber, tantos anos depois, as pequenas histórias de Tasso Soares de Lima, autor deste livro. Tasso foi meu aluno na cadeira Estilos Jornalísticos, do curso de comunicação da UFRN. A mesma Universidade que há quase trinta anos não acatou o livro deste professor iniciante - livro que ela mesma publicara - por não considerar a crônica um gênero formal.
mmContar histórias da vida banal é uma forma de literatura, se a literatura também é feita da vida ao rés-do-chão. Nada de recortar o cotidiano do jornalismo, negar ao seu livro de páginas grandes e soltas que é o jornal, o romance da vida como ela é, na expressão de Nelson Rodrigues. Seria fazê-la irreal, empobrecê-la, negar o sumo das veias abertas pelo olhar do leitor. Como é o caso deste livro, onde o leitor vai encontrar uma pequena coleção de retratos. Nascidos e renascidos, todos eles, das impressões humanas.
mmTasso é um contador de histórias que, a rigor, não abre só agora, com este livro, a gaveta onde guarda suas invenções literárias. Funcionário do quadro técnico do Banco do Nordeste, rompeu seu próprio silêncio ao ter a crônica - Vida de Zangão - publicada pela revista Conterrâneos, do BNB, em junho de 2007. Seis meses depois, voltou a ganhar espaço na edição de dezembro de 2007, com seu Concerto para triângulo em dó maior.
mmSua crônica tem o talhe da linguagem que, antes de servir aos manuais, se entrega ao ritmo dos falares e da linguagem corrente. Linguagem que é certa, como certa é a língua do povo na boa lição do poeta Manuel Bandeira, busca na sincronicidade com o leitor, o fio da literariedade. Porque o texto que sabe contar bem uma história há de também saber espantar e enternecer, com a força desse rio que é a leitura na trilha das descobertas.
mmA crônica de Tasso não abre mão daquela boa usinagem de idéias. Retoma títulos de uso corrente para trabalhar novos sentidos, numa capacidade de reinvenção que cobre de bom humor seu olhar sobre as coisas da vida. São os casos da Revolta do fogão; Acendam as luzes, o cantor sumiu; O peixe suspeito; O primeiro arroto a gente nunca esquece; O sumiço de cheewy; O show; Que diabo de boi é esse; O bife de panela, e outras histórias.
mmOu, então, na sua usinagem criativa, quando rouba da austera linguagem econômica alguns velhos clichês tão desgastados para emprestar-lhes um toque de humor, como em A reforma testiculária e O fundo perdido; ou, ainda, na sua declarada ironia, caso da história De médico e louco tudo tem de Mossoró um pouco.
mmLeiam as histórias de Tasso Soares de Lima, seguindo o desenho de seus tantos e tão divertidos personagens, centros humanos de humor e de tensão, afinal, como no conto, crônica é também tudo que se chamar de crônica para usinar também a lição de Mário de Andrade. Como a santa que anda de costas; a neve de arroz do fogão revoltado; o medo de Wanda de encontrar os dedos de uma mão; e o gato russo que se chama Muskitin. Vinte e sete histórias formam o universo deste livro – Concerto para triângulo em dó maior. Um livro de estréia, mas que tem a marca de chegada de um novo contador de histórias. A equilibrar-se, como todos nós, no arame dos estilos. Entre a crônica e o causo, o conto e a história, no grande circo da vida literária.

Redinha, lua grande de fevereiro de 2008.


(*) Vicente Serejo é membro da Academia Norte-riograndense de Letras, faz parte do Conselho Estadual de Cultura, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, membro da União Brasileira de Escritores (São Paulo) e membro da Associação Brasileira dos Bibliófilos (Fortaleza)